quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Aussies durante duas semanas

Viver 3 anos e 3 meses em Timor-Leste sem colocar os pés na vizinha Austrália seria o desperdício de uma grande oportunidade, certo? É que, à excepção do acesso à Indonésia por terra para visitar Timor Ocidental, a Austrália é, geograficamente, o país mais acessível a partir de Díli: a Airnorth disponibiliza voos diários para Darwin que está apenas a uma hora e meia de avião. Contudo, é mais caro viajar para Darwin do que para Bali - este sim, o destino preferido da comunidade estrangeira residente em Díli. E a verdade é que a Austrália não despertava em nós o mesmo interesse de outros destinos (a vizinha Nova Zelândia, por exemplo). Por todas estas razões, e também porque da Austrália se relatam demasiados encontros imediatos com todo o tipo de bichos assustadores, corríamos o risco de ter desperdiçado esta oportunidade. Se tal tivesse acontecido, teríamos cometido uma grande injustiça para com a Austrália. Porém, muito graças às amizades luso-australianas nascidas em Timor, aquilo que antes era uma mera oportunidade ganhou contornos de visita obrigatória.

O primeiro dia na Austrália foi passado em Darwin. Spoiler: não é uma boa amostra do país. Acabadinhos de sair de Timor-Leste, percorrer Darwin foi como chegar de repente a outro planeta. De entre as coisas que nos causaram estranheza, destacamos, claro, o problema social da (não) integração dos aborígenes. Não nos alongaremos a discorrer sobre um assunto que é demasiado complexo e que muito escapa à nossa compreensão. Direi apenas que muito nos chocou testemunhar ali a existência de dois mundos que, estando presentes no mesmo espaço, não interagem e parecem ignorar-se mutuamente. Os aborígenes de Darwin vivem num limbo: não estão integrados nem no meio urbano e ocidentalizado que a cidade oferece nem nas comunidades aborígenes tradicionais.

No demais, Darwin é uma cidade estranha: ainda sob clima tropical, não se vê muita gente na rua durante o dia, pelo que às tantas, ao caminhar pela cidade, contabilizávamos mais stands de veículos ligeiros e pesados do que pessoas. A agitação só chega ao final da tarde, quando os bares e os restaurantes da baixa atraem os trabalhadores saídos do expediente. A zona marginal é bonita e ali tivemos o primeiro encontro com uma fenómeno que merece grande realce: para além dos simpáticos cangurus e koalas, são as aranhas, as cobras, os tubarões e os crocodilos que povoam a nossa ideia da Austrália, mas os pássaros... ninguém fala dos pássaros! E são tantos e tão variados aqueles que pudemos ver de perto nas reservas ou mesmo nos parques públicos e nos quintais dos amigos que nos receberam nas suas casas!


Ainda em Darwin, visitámos o Museum and Art Gallery of Northern Territory que nos deu a conhecer a arte aborígene e um crocodilo de cinco metros de comprimento cujo nome, Sweetheart, ilustra bem o humor australiano.




No aeroporto, um dos agentes da alfândega fizera questão de nos conceder uma primeira amostra desse humor quando nos disse, num tom de espanto, que não estava à espera de nos encontrar ali naquele dia... E registámos ainda outras bizarrias que cremos serem exemplo desse humor particular, como um restaurante chamado Frying Nemo ou a comercialização de escroto de canguru como souvenir...

Em Sydney estivemos apenas algumas horas. Ficámos com a impressão de que é uma cidade agradável e a zona da marina, ladeada pela antiga ponte e pela Opera House, é de facto muito bonita. Mas podemos desde já assumir que não foi pelas cidades que nos rendemos à Austrália. Tanto Sydney como Melbourne são cidades simpáticas, com uma vibe muito moderna e uma diversidade cultural que as enriquece, mas não podem ser comparadas às grandes cidades europeias no que diz respeito à grandiosidade e quantidade das atrações turísticas. Os próprios australianos reconhecem que o seu património histórico é muito recente se o compararmos com o património que a Europa herdou de eras antiquíssimas.




Em Melbourne passámos mais tempo do que em Sydney e pudemos visitar museus, parques, bibliotecas e jardins. Para além disso, a Débora aceitou o desafio de um amigo para participar num divertido jogo de Swordcraft. Recebeu a formação para principiantes e, depois, por ali andou de espada em punho, num recinto de futebol australiano, a lutar contra cruzados, vikings e samurais...







Mas foram os subúrbios e as pequenas vilas que nos encantaram na Austrália: em New South Wales ficámos em Lorn, uma bonita localidade perto de Maitland, esta uma vila um bocadinho maior. Na Austrália parece que tudo é construído na horizontal: há abundância de espaço, pelo que as ruas são largas, as casas são espaçosas e toda a gente tem o seu quintal. Lorn é uma localidade feita de bonitas vivendas, antigas, mas sempre renovadas de modo a manterem o aspeto original singelo e muito british. 



Em Newcastle nadámos na Bar Beach: belíssima praia com direito a aviso dada a possibilidade de presença de tubarões nas águas do Mar da Tasmânia. E fomos a uma reserva natural para ver de perto animais muito giros!








Já no estado de Victoria, nas redondezas de Melbourne, ficámos hospedados com amigos em Pakenham, um subúrbio também tranquilo e agradável. E naquela região também tivemos encontros com pássaros muito giros!



Fomos também a Ballarat, uma cidade histórica a norte de Melbourne, famosa por ser a metrópole da região para a qual migraram milhares de britânicos nos anos 1850s durante a corrida ao ouro. Hoje em dia é uma cidade bonita, de tamanho médio, com um jardim botânico muito giro para passeios e piqueniques!


Uma das principais atrações turísticas do estado de Victoria é Sovereign Hill, um parque temático localizado nos arredores de Ballarat onde é recriada a típica aldeia mineira do século XIX. A visita é cara, mas vale o preço do bilhete pela quantidade e qualidade das exibições interativas e informativas que ali são disponibilizadas: produção de doces artesanais (que eram só para consumo dos adultos porque, naquele tempo, o açúcar era um bem muito caro); dramatização de um leilão de uma mulher por parte do seu marido (porque não havia divórcio e esta era a forma encontrada para oficializar uma separação); simulação de uma aula na escola primária; demonstração de como o ouro era derretido e, depois, transformado em barras de ouro; visita a uma espécie de mina; ... etc. De todas as atrações turísticas que visitámos na Austrália, esta foi aquela de que mais gostámos!









No último dia da nossa experiência como Aussies, fomos fazer praia e passear na Phillip Island, famosa, entre outras coisas, por ser palco diário de uma parada de pinguins! O custo dos bilhetes e o relógio (com um avião para apanhar nessa noite) dissuadiram-nos no que respeita a assistir a essa parada. Mas, num passeio até The Nobbies, na ponta oeste da ilha, ainda tivemos a boa fortuna de ver um pinguim meio escondido. E, já quando estávamos de abalada, vimos alguns wallabies por entre a vegetação perto da estrada. Este aqui, muito gentil, pareceu pousar para a fotografia como quem nos diz adeus, obrigado pela visita, e serão sempre bem-vindos à minha terra!



quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Lágrimas e Sorrisos na Despedida

Lembro-me do dia 2 de Outubro de 2014 e das lágrimas que rolavam cara abaixo quando, de mãos dadas, percorríamos os corredores do aeroporto de Lisboa em direção ao ponto de controlo de segurança, já depois de termos entrado na zona exclusiva para passageiros e termos dado o último adeus à família e aos amigos que se despediram de nós no aeroporto.

Tínhamos desejado e sonhado viver uma temporada em Timor-Leste e, agora, o desejo estava a materializar-se. Ao mesmo tempo, adensava-se a consciência da distância à família e à vida que tínhamos conhecido até então. Naqueles corredores do aeroporto, o nosso coração fez-se muito pequenino, pressionado pela ansiedade e pela incerteza, à medida em que avançávamos em direção ao desconhecido.

Agora, passados três anos e mais quase três meses, chega ao fim a nossa temporada timorense. E tal como aconteceu na viagem que primeiro aqui nos trouxe, também agora são as lágrimas que pautam os vários momentos de despedida que nos são oferecidos. Porque também agora surge a consciência de que, mais uma vez, deixaremos para trás família. Sim, aqui conhecemos mauns e manas que se tornaram irmãos e irmãs.

Ao longo destes três anos deparámo-nos com muitas situações que provocaram mais lágrimas. Frustrações, injustiças, histórias comoventes de sofrimento e resiliência... Por vezes chorar foi a forma encontrada para conseguirmos encaixar a realidade e trazê-la connosco no coração. Naquele coração que se fez pequenino nos corredores do aeroporto de Lisboa, mas que depois teve de se alargar e esticar (às vezes com dor) para que lá coubesse tudo aquilo que aqui vivemos.

E mesmo que a emoção leve a melhor e sejam as lágrimas a marcar alguns momentos aqui passados, e também a entrada e a saída neste país do sol nascente, são muito mais os sorrisos que vão perdurar na memória. Os sorrisos quentes, hospitaleiros e francos dos amigos timorenses.

Dizia-me a Débora recentemente que Timor me fez sorrir de forma diferente, mais aberta, mais escancarada. Que talvez Timor tenha provocado algumas benditas brechas na minha natureza tímida e fechada. Não me tinha apercebido de tal fenómeno até ela o identificar. E, mesmo não estando ainda certo de que ela tenha razão, oro para que assim seja! Que de Timor eu leve as emoções, um coração alargado e, se necessário, uma ou outra lágrima. Mas que leve também comigo essa boa disponibilidade para ser mais caloroso, mais pronto a abraçar o próximo, mais corajoso na hora de sorrir diante do desconhecido.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Fim de Semana na Paz de Laclubar

Díli é uma cidade muito barulhenta e essa é uma das realidades mais surpreendentes com que nos deparámos aqui. Surpreendente porque uma pessoa, antes de cá aterrar, imaginava-a bucólica, lenta e tranquila, como se se tratasse de um oásis neste mundo tão acelerado e ruidoso.

Assim, sair de Díli é não só aceder a um outro Timor, talvez mais rústico e genuíno e também mais pobre e mais distante de tudo aquilo que consideramos os serviços básicos no mundo desenvolvido (saúde, eletricidade, saneamento, etc), mas é também aceder a regiões onde ainda reina uma saudável e contrastante tranquilidade.




A visita a Laclubar já tinha sido planeada em meados do ano passado, pouco depois de termos tido conhecimento da existência da Hospedaria São João de Deus. Mas quando, em Maio de 2016, tentámos reservar quarto na Hospedaria já ela estava esgotada para o fim de semana grande em que se celebrou o aniversário da restauração da independência de Timor-Leste. Tivemos então de optar por uma ida até Com, na ponta leste do país.

Desta vez reservámos quarto com mais antecedência se bem que isso até teria sido dispensável tendo em conta que, talvez por causa das chuvas, só nos cruzámos com mais dois hóspedes. De qualquer forma, fizemos a nossa reserva assim que soubemos que seria feriado na sexta-feira 3 de Março, cheios de vontade de experimentar a paz e o clima mais frio de Laclubar.

Não ficámos desiludidos! Em Laclubar encontrámos a Hospedaria São João de Deus que é muito mais do que uma hospedaria. Na verdade, o principal trabalho que a Ordem Hospitaleira de São João de Deus ali é a gestão de uma Casa de Saúde dedicada à recuperação de pacientes com problemas psicológicos e mentais. O frade português responsável pela coordenação das atividades de saúde e também o responsável pela gestão da hospedaria que funciona, duplamente, como uma forma de angariar receitas para a Casa de Saúde e como um espaço que visa proporcionar retiro e descanso aos hóspedes, atraindo sobretudo estrangeiros residentes em Díli.

E, de facto, retiro e descanso foi o que ali desfrutámos. Connosco levámos livros de Henri Nouwen e Sarah Withrow King, no caso da Débora, e de Julian Barnes e Amy Chua, no caso do David. Houve tempo para passear nas redondezas admirando a paisagem dominada pelas montanhas e pelo nevoeiro e houve tempo para meditar e para partilhar pensamentos com o papel e um com o outro.

O espaço é muito bonito, com construções em madeira e canteiros de flores bem cuidados. A parte reservada para a hospedaria é um edifício em madeira com uma espécie de pátio interior a fazer lembrar os claustros monásticos. Está tudo muito bem equipado e nem os constrangimentos elétricos (ainda frequentes e quase ininterruptos nas últimas duas semanas conforme nos explicou o sr. frade) foram motivo de perturbação. De qualquer forma não tínhamos levado equipamentos elétricos e as leituras podiam fazer-se no pátio sob a luz natural esbranquiçada por via de um sol escondido atrás do nevoeiro.






O duche fez-se de água tépida, improvisado e à maneira indonésia, com gayon, porque as casas de banho estão muito bem equipadas mas o sistema de aquecimento não recebeu energia suficiente para funcionar. Mas isso também fez parte da boa aventura.

Foi um fim de semana de pura tranquilidade e regressámos a Díli com o desejo de voltar a visitar Laclubar caso surja uma boa oportunidade. Nem o percurso acidentado nos demove! E se ele é acidentado!... Vejam lá no vídeo abaixo:


terça-feira, 4 de outubro de 2016

Dois Anos de Timor-Leste

Há dois anos atrás, no dia 4 de outubro de 2014, na sequência de vários meses de contactos entre as Caldas da Rainha e Díli, e depois de uma viagem de quatro vôos distribuídos por três dias, aterrávamos finalmente no aeroporto Nicolau Lobato. Um jovem casal à procura de aventuras, com vontade de abraçar a diferença, com o desejo, quiçá ingénuo, de conhecer o mundo belo, cru e difícil - como ele é.

Porquê Timor-Leste? Há várias razões para termos decidido vir para esta nação do sudeste asiático: a pertença à CPLP, os ecos de estórias familiares do passado, as memórias da causa timorense tão presente nas nossas infâncias... Talvez nenhuma delas seja uma razão suficientemente forte e objetiva por si só, mas, em conjunto, motivaram aquela que foi a nossa opção desde que nasceu em nós a vontade de uma temporada fora da pátria.

O que encontrámos em Timor-Leste? Encontrámos os sorrisos mais bonitos e as paisagens mais belas. Encontrámos um povo quente e amigável, sempre pronto para celebrar a vida e acolher o malae. Encontrámos uma sociedade em franco desenvolvimento com todo o bem e todo o mal que daí resulta (o capitalismo asiático, crescente e tão elogiado, parece-nos ainda mais nefasto do que a sua versão ocidental, por se alicerçar num consumismo ainda mais acrítico). Encontrámos uma cultura rica, milenar, profundamente enraizada na sociedade. Uma cultura que fornece as crenças e as práticas basilares desta sociedade e que é acarinhada e afirmada como forma de consolidar a harmonia e a unidade nacionais e expurgar definitivamente os fantasmas do passado. Uma cultura, que se necessário for, se impõe até ao ritmo do desenvolvimento...

Daí advêm muitas contradições: é um desenvolvimento que se faz aos soluços e que parece às vezes dar primazia ao acessório e manter intacto o essencial. É um desenvolvimento lento e bem caracterizado por um dos termos mais usados na língua tétum: 'Seidauk, maun, seidauk'. Este 'seidauk', que significa 'ainda não', ouvimo-lo diariamente no trabalho, nas ruas, nas lojas, e nas repartições públicas onde, ciclicamente, temos de lidar com as burocracias da nossa imigração.

Aqui encontrámos também profundas contradições e complexidades. A cultura colorida e bela que tanto nos encanta, os tais, as danças e as festas, as famílias alargadas e a vivência em comunidade, têm o seu lado frustrante. Pois essa cultura é, também, em muitos aspetos, a algema que mantém o povo prisioneiro de costumes questionáveis. Damos como exemplo o casamento tradicional que obriga o noivo ao pagamento de um barlaque - um dote que pode atingir o valor máximo de 77 búfalos. Não raras vezes, este dote representa uma pesada dívida que o jovem noivo irá carregar antes e depois do casamento... Também por ocasião da morte os costumes são pesados. Nos 40 dias após a morte, a família direta do morto tem a obrigação cultural de suportar os familiares que quiserem deslocar-se à casa do falecido e ali usufruir de manjar. Por conta dessa tradição, ouvimos de uma senhora recém viúva que, no auge do seu sofrimento, resumiu assim a situação: "O meu marido morreu e agora a nossa cultura quer matar-me a mim".

Espantamo-nos e, presumindo que a nossa cultura e os nossos costumes são mais benignos, indignamo-nos com estas coisas. Questionamos os nossos amigos timorenses e desejamos para eles um fardo mais leve. (Entretanto, isto deve também aguçar-nos a auto-crítica: não se dará o caso de também a nossa cultura ter aspetos que nos aprisionam?)

Este é um mundo em que nada é a preto e branco, como nos alertou uma missionária brasileira logo à nossa chegada: "Para tudo aquilo que aqui vos parecer estranho e para todos os problemas que vos parecerem de fácil solução, saibam que há certamente uma razão para as coisas serem como são mesmo que essa razão não seja visível de imediato." (Podem não ter sido estas as exatas - e úteis - palavras da missionária, mas foi assim que a minha memória as arquivou.)

Um interessante caso de estudo é o município de Ermera. Destaca-se por ser o município que mais contribui para a exportação anual de cerca de 9.000 toneladas de café, o que, em teoria, deveria representar receitas mais elevadas para as famílias e comunidades locais. Contudo, tem sido repetidamente dado como o município mais pobre de Timor-Leste. Porquê? Segundo ouvimos dizer a um responsável governativo, em Ermera, havendo maior capacidade financeira, as atividades culturais envolvem também verbas mais altas, gerando assim este paradoxo: as comunidades que mais recebem também são as que mais gastam. Esta realidade foi até usada por esse governante como argumento contra o financiamento direto do Estado aos pequenos agricultores - naquilo que seria uma revolução agrícola patrocinada pelo Governo que, em teoria, poderia fazer evoluir o setor mais empregador do país e, com ele, toda a economia nacional.

Sim, em Timor-Leste encontrámos pobreza. Pobreza extrema e frustrante. Uma taxa de mortalidade infantil que, mesmo em declínio, continua a registar valores que não deviam ser uma realidade do século XXI. Uma taxa de subnutrição também chocante e agravada pelos hábitos alimentares introduzidos pelos indonésios: vende-se a boa fruta e os ricos legumes para depois comprar e comer só noodles...

Encontrámos, até, situações, estórias, comportamentos, desgraças horríveis - infernais - que, pela sua natureza delicada, não podem ser trazidas a este texto. (E vai aqui um parêntesis socioteológico: se me perguntam se acredito no inferno, esta é a melhor resposta que hoje posso oferecer: "Olha à tua volta! Abre o jornal! Vê as notícias com gotinhas de colírio! Claro que o inferno existe. Não se trata de acreditar ou não acreditar. As evidências estão aí. Estes infernos existem e, se querem a minha opinião, são estes infernos, e não o outro, que devem fazer sangrar os nossos corações.")

Também na área da educação, na qual temos trabalhado, encontrámos desafios imensuráveis, uma complexidade gritante e episódios surreais. É preciso explicar que o sistema educativo de Timor-Leste está a ser construído de raiz. Os colonizadores portugueses pouco cá deixaram. Por altura do 25 de Abril, a taxa de iliteracia em Timor-Leste era superior a 90%! E o pouco que se fez deveu-se às missões católicas. O regime de Suharto, decidido que estava a disseminar a sua ideologia, 'um só país, um só povo, uma só língua', até foi responsável por um desenvolvimento significativo da educação. Foram construídas e abertas escolas de todos os níveis de ensino e vieram professores das províncias indonésias para disseminar a língua. (A política linguística da Indonésia foi extremamente bem sucedida e os seus efeitos continuam, hoje, a dificultar a consolidação da Língua Portuguesa.) No entanto, depois de conhecidos os resultados do Referendo do dia 31 de Agosto de 1999, as milícias pró-indonésia queimaram e destruíram infra-estruturas básicas, incluindo dezenas de escolas. Para além disso, os professores indonésios regressaram às respetivas províncias. A jovem nação deparava-se assim com uma terrível situação: escolas destruídas, professores inexistentes, milhares de jovens e crianças para educar. O país leva agora 14 anos desde a restauração oficial da independência e o setor da educação vai dando os seus passos em direção à visão estabelecida no Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030: "As pessoas serão letradas, qualificadas, saudáveis e viverão uma vida longa e produtiva. Elas participarão activamente no desenvolvimento económico, social e político, promovendo a igualdade social e a unidade nacional".

Passados dois anos já estamos familiarizados com toda esta complexidade e com as contradições que o quotidiano nos traz. Mas estamos igualmente familiarizados - e gratos - com a beleza que esse quotidiano também nos traz. As avenidas e as ruas em que nas horas de ponta se amontoam taxis, jipes, microlets, motorizadas ruidosas e carroças de vendedores ambulantes que frequentemente as empurram em contramão. Os vendedores de peixe que em plena avenida expõem os barramundi, os peixes-papagaio e as sardinhas no muro que separa a estrada marginal da praia. Os mercados de frutas e legumes onde agora, por falarmos e negociarmos em Tétum (e às vezes até no dialeto makassai), já conseguimos preços semelhantes aos do super-mercado. O mágico pôr do sol que, mesmo quando não é observado diretamente, faz questão de espraiar os seus tons vermelhos e liláses sobre toda a cidade de Díli. Os passeios aos municípios, ao Timor profundo onde ainda não chegaram os taxis, nem os hotéis ou bares, mas onde chegou já o desejo de desenvolvimento. Todas estas coisas já nos são familiares e queridas. 

E mais queridas ainda são as histórias e as estórias bonitas que por aqui também encontrámos. Histórias de um progresso que se vai impondo gradualmente e que conta também com uma face benigna e celebrada. Um progresso cujo lado mais estrutural - mais político - tenho a honra de testemunhar em primeira mão: leis, atividades e iniciativas que se vão implementando para que o sistema educativo seja sustentável, mais coerente e garanta melhores resultados. A Débora tem ainda a honra de testemunhar em primeira mão, de forma quotidiana, um lado mais humano deste progresso - com mais rosto. Ela traz-me diariamente pedaços de estórias de meninos e meninas que, a despeito das limitações e das carências, se esforçam para saber mais e para crescer mais. Meninos e meninas inspiradores porque superam as circunstâncias e os obstáculos tão visíveis para alcançar riquezas invisíveis. E há outras histórias de gente que desperta para novas atitudes perante a vida, que adquire novos hábitos, que adquire nova mentalidade. Há, finalmente, a história dos nossos corações que se alargam e esticam - muitas vezes com dor - para que todas estas coisas lá caibam e lá façam morada. 

Em tudo isto, é-nos confirmada a esperança que nos move: de que este lado da realidade não é apenas a dimensão na qual se concretizam infernos, mas também aqui se concretizam paraísos ou, na linguagem evangélica de Mateus e Lucas, também aqui se concretiza um Reino que tudo permeia como fermento no meio da massa. Um Reino do qual há traços visíveis (nós nem sempre os conseguimos detectar e, para tal, pedimos mais colírio!) mas que ainda não se concretiza na plenitude. O e o ainda não. Como o desenvolvimento timorense: "Seidauk, maun, seidauk!"

Depois de dois anos somos, inevitavelmente, pessoas diferentes por tudo aquilo que aqui encontrámos, por tudo aquilo que temos sido desafiados a fazer e por todas as pessoas e todos os sorrisos com quem nos cruzámos. Como consequência do muito trabalho, este blogue tem sido pouco atualizado durante estes dois anos. Espero que, de alguma forma, este balanço mais extenso compense tantos meses sem textos. Mas o barquinho - que somos nós - continua na sua rota. E o condutor - que é o Senhor - tem sido fiel e bom.


Fotografia: D & D no aeroporto de Bali, na manhã do dia 4 de Outubro de 2014, prestes a cumprir o último vôo antes de aterrar em Timor-Leste pela primeira vez.

domingo, 17 de abril de 2016

Uma viagem ao leste de Timor-Leste

Esta viagem era há muito aguardada e planeada com grande expectativa. O município de Lautém, a sua capital Lospalos e, especialmente, o ilhéu de Jaco são destinos famosos entre os malae e que estavam no topo das nossas prioridades turísticas desde a nossa vinda para Timor.

A Débora, em especial, desenvolveu um certo fascínio pelo povo deste município, que parece ter algumas peculiaridades culturais que não se encontram no resto do país, e pelo fataluko, o dialeto que ali se fala.

O ilhéu de Jaco é um paraíso rodeado por águas cristalinas. Tem uma boa extensão de praia paradísiaca com areia branca e um mar onde podemos nadar em conjunto com centenas de peixinhos de todas as cores. Talvez seja um dos locais mais bonitos do mundo!
E qual é a diferença entre esta praia paradisíaca e as imagens dos folhetos das agencias de viagens? Toda! Exactamente porque esta não aparece nos folhetos.

Na sexta-feira santa lá fomos. Um grupo de 6 aventureiros, num jipe alugado, devidamente apetrechados com comes-e-bebes e com o sr. Ameu a conduzir, um motorista já com experiência no percurso Dili-Jaco.

Às 7h30 já estávamos na estrada preparados para a longa viagem. São pelo menos 6 horas de caminho desde Díli até à Praia de Valu, em frente ao ilhéu de Jaco, sendo que os últimos 7 ou 8 kms são particularmente penosos porque a estrada está em péssimas condições, e os últimos 3 km são umas inacreditáveis escadas impossíveis de ultrapassar com um tipo de transporte mais ligeiro.

Mas aqui a viagem faz também parte da aventura, da aprendizagem, da exploração. Fomos lentamente percorrendo as vilas e aldeias de Díli até Com sendo necessário abrandar muitas vezes para dar prioridade aos fieis católicos que, um pouco por todo o lado, organizaram pequenas procissões em jeito de  reconstituição da via sacra percorrida por Jesus, o Cristo, há 2000 anos.

Já depois de acabar com o farnel ali para os lados de Laga, chegámos a Com pelas 15h00. Segundo o plano inicial, iríamos fazer ali uma paragem para mergulhar na famosa praia da vila. No entanto, o relógio já ia avançado e a chuva também espreitava. O mergulho em Com ficará para outra altura (também por ali há umas guesthouses promissoras e uma tranquilidade agradável que convidam a uma nova visita). Continuámos então a caminho da ponta mais a leste de Timor-Leste (passe o pleonasmo). Talvez calhe bem explicar que, apesar de ser um pequeno país, Timor-Leste também se divide na parte leste e oeste, ou, como se diz em Tetum, lorosae (nascer do sol) e loromono (pôr-do-sol). Inclusivamente houve, no passado, e oramos para que tenha sido só no passado, quezílias e rivalidade profunda entre as pessoas de lorosae e as pessoas de loromono.

Bom, lá saímos de Com em direção a Tutuala através de uma estrada secundária mas mais direta. Chegámos a Tutuala pelas 16 horas. Tutuala é uma pequena vila e um dos locais mais recônditos da ilha de Timor (se bem que há locais mais perto de Díli cujo acesso é bem mais difícil).


Fomos até à Pousada de Tutuala, uma de várias pousadas que sobreviveram desde o tempo colonial e que vão lentamente sendo recuperadas para fins turísticos. A Pousada tem localização privilegiada no topo do promontório no qual termina abruptamente a estrada que chega à vila. A partir dali não há estrada. Há só mar: a norte o mar de Banda, a sul o mar de Timor.


Parámos para fotografias, mas foi uma paragem curta: ainda faltavam os tais 7 ou 8 km de descida até à praia de Valu e queríamos fazê-los ainda com boa luz solar.


Junto há praia de Valu há dois locais para pernoitar. Ficámos alojados na Lakumorre Guesthouse. Banho de gayon. Boa comida. Colchão no chão mas com rede mosquiteira. Condição razoável para a realidade de Timor.

Naquela tarde, já perto das 18 horas, ainda deu para um mergulho na praia de Valu, também ela uma bonita praia. Depois houve tempo para jogo de cartas e para o Sequence.


No dia seguinte foi o dia de visitar Jaco! Acordámos cedo, tomámos o mata-bicho e fomos até à zona dos pescadores para embarcar para Jaco num dos seus barquinhos.


O dia passado em Jaco foi, claro, a melhor praia que alguma vez fizemos. Fazer praia ali é maravilhoso. O snorkeling foi fantástico, mesmo tendo de improvisar, nadar só com um braço e segurar os óculos com a outra mão, porque o equipamento partiu-se de forma estranha. Pena é não termos levado uma daquelas máquinas descartáveis que permitem fotografar debaixo de água como levámos às Berlengas.


Bom, mas mais do que palavras sobre Jaco, deixamo-vos as imagens.






Jaco pode ser visitado nesta modalidade em que nós fomos (com boleia dos pescadores) mas para os timorenses é uma ilha sagrada, por isso não se pode lá dormir, nem se pode construir nada.



Às 16 horas os pescadores foram buscar-nos para regressarmos à praia de Valu. No resto do dia ficámos na nossa guesthouse a passar o tempo com jogos, guitarra e converseta.

No dia seguinte levantámo-nos cedo com o objetivo de ir visitar ili-kere-kere, um local de grutas e abrigos criados pelas escarpas daquela espécie de promontório de Tutuala. Este local é duplamente importante: foi descoberta ali arte rupestre datada de 3000 a 2000 anos e foi também lugar de refúgio para os guerrilheiros da resistência timorense durante a ocupação indonésia.






Disseram-nos que as grutas de ili-kere-kere ficavam ‘logo ali, muito perto’. Mas quando um timorense diz que alguma coisa fica perto ou demora pouco, temos de multiplicar essa informação por dois ou por três para obter uma estimativa realista. Então andámos e andámos no meio da selva timorense até chegarmos a ili-kere-kere já a suar em bica. Valeu a pena! Não só pelas imagens rupestres gravadas nas rochas, mas também pela espetacular paisagem marítima que ali podemos vislumbrar. Aquelas escarpas são também habitat de milhares e milhares de abelhas, por isso fomos avisados para falar muito baixinho e não causar qualquer alvoroço que pudesse revoltar as abelhas. Assim fizemos, claro! Uma coisa é ter coragem para nadar nas águas de Jaco mesmo que de vez em quando já tenham sido ali avistados crocodilos. Outra coisa é metermo-nos com abelhas. Somos malucos, mas não tanto!


De ili-kere-kere partimos para a vila de Lospalos. Pelo caminho parámos para fotografar as casas sagradas típicas de Lospalos. Têm um significado muito forte para a religião tradicional animista dos locais e são construídas duas a duas, sendo uma considerada masculina (mane) e outra feminina (feto), e não sendo utilizados quaisquer pregos na sua construção. É uma espécie de puzzle complexo cujo segredo não está acessível a todos.

Lospalos é a capital do município de Lautém e o único meio urbano naquela ponta do território. Parámos na casa do professor Cancio, um dos aventureiros. Mostraram hospitalidade servindo-nos bebidas frescas e um petisco de carne muito saboroso.

Ainda demos uma volta de carro por Lospalos para sentir o pulso à cidade. Uma cidade tranquila, longe do bulício e da desorganização que por vezes impera em Díli. E entretanto faziam-se horas de começar a longa viagem de regresso a Díli. Mais 6 horas de caminho, com uma paragem em Laga para comer um peixinho grelhado no restaurante de beira da estrada gerido pelo professor Laurentino que, ficámos a saber, é também um empreendedor.