terça-feira, 4 de outubro de 2016

Dois Anos de Timor-Leste

Há dois anos atrás, no dia 4 de outubro de 2014, na sequência de vários meses de contactos entre as Caldas da Rainha e Díli, e depois de uma viagem de quatro vôos distribuídos por três dias, aterrávamos finalmente no aeroporto Nicolau Lobato. Um jovem casal à procura de aventuras, com vontade de abraçar a diferença, com o desejo, quiçá ingénuo, de conhecer o mundo belo, cru e difícil - como ele é.

Porquê Timor-Leste? Há várias razões para termos decidido vir para esta nação do sudeste asiático: a pertença à CPLP, os ecos de estórias familiares do passado, as memórias da causa timorense tão presente nas nossas infâncias... Talvez nenhuma delas seja uma razão suficientemente forte e objetiva por si só, mas, em conjunto, motivaram aquela que foi a nossa opção desde que nasceu em nós a vontade de uma temporada fora da pátria.

O que encontrámos em Timor-Leste? Encontrámos os sorrisos mais bonitos e as paisagens mais belas. Encontrámos um povo quente e amigável, sempre pronto para celebrar a vida e acolher o malae. Encontrámos uma sociedade em franco desenvolvimento com todo o bem e todo o mal que daí resulta (o capitalismo asiático, crescente e tão elogiado, parece-nos ainda mais nefasto do que a sua versão ocidental, por se alicerçar num consumismo ainda mais acrítico). Encontrámos uma cultura rica, milenar, profundamente enraizada na sociedade. Uma cultura que fornece as crenças e as práticas basilares desta sociedade e que é acarinhada e afirmada como forma de consolidar a harmonia e a unidade nacionais e expurgar definitivamente os fantasmas do passado. Uma cultura, que se necessário for, se impõe até ao ritmo do desenvolvimento...

Daí advêm muitas contradições: é um desenvolvimento que se faz aos soluços e que parece às vezes dar primazia ao acessório e manter intacto o essencial. É um desenvolvimento lento e bem caracterizado por um dos termos mais usados na língua tétum: 'Seidauk, maun, seidauk'. Este 'seidauk', que significa 'ainda não', ouvimo-lo diariamente no trabalho, nas ruas, nas lojas, e nas repartições públicas onde, ciclicamente, temos de lidar com as burocracias da nossa imigração.

Aqui encontrámos também profundas contradições e complexidades. A cultura colorida e bela que tanto nos encanta, os tais, as danças e as festas, as famílias alargadas e a vivência em comunidade, têm o seu lado frustrante. Pois essa cultura é, também, em muitos aspetos, a algema que mantém o povo prisioneiro de costumes questionáveis. Damos como exemplo o casamento tradicional que obriga o noivo ao pagamento de um barlaque - um dote que pode atingir o valor máximo de 77 búfalos. Não raras vezes, este dote representa uma pesada dívida que o jovem noivo irá carregar antes e depois do casamento... Também por ocasião da morte os costumes são pesados. Nos 40 dias após a morte, a família direta do morto tem a obrigação cultural de suportar os familiares que quiserem deslocar-se à casa do falecido e ali usufruir de manjar. Por conta dessa tradição, ouvimos de uma senhora recém viúva que, no auge do seu sofrimento, resumiu assim a situação: "O meu marido morreu e agora a nossa cultura quer matar-me a mim".

Espantamo-nos e, presumindo que a nossa cultura e os nossos costumes são mais benignos, indignamo-nos com estas coisas. Questionamos os nossos amigos timorenses e desejamos para eles um fardo mais leve. (Entretanto, isto deve também aguçar-nos a auto-crítica: não se dará o caso de também a nossa cultura ter aspetos que nos aprisionam?)

Este é um mundo em que nada é a preto e branco, como nos alertou uma missionária brasileira logo à nossa chegada: "Para tudo aquilo que aqui vos parecer estranho e para todos os problemas que vos parecerem de fácil solução, saibam que há certamente uma razão para as coisas serem como são mesmo que essa razão não seja visível de imediato." (Podem não ter sido estas as exatas - e úteis - palavras da missionária, mas foi assim que a minha memória as arquivou.)

Um interessante caso de estudo é o município de Ermera. Destaca-se por ser o município que mais contribui para a exportação anual de cerca de 9.000 toneladas de café, o que, em teoria, deveria representar receitas mais elevadas para as famílias e comunidades locais. Contudo, tem sido repetidamente dado como o município mais pobre de Timor-Leste. Porquê? Segundo ouvimos dizer a um responsável governativo, em Ermera, havendo maior capacidade financeira, as atividades culturais envolvem também verbas mais altas, gerando assim este paradoxo: as comunidades que mais recebem também são as que mais gastam. Esta realidade foi até usada por esse governante como argumento contra o financiamento direto do Estado aos pequenos agricultores - naquilo que seria uma revolução agrícola patrocinada pelo Governo que, em teoria, poderia fazer evoluir o setor mais empregador do país e, com ele, toda a economia nacional.

Sim, em Timor-Leste encontrámos pobreza. Pobreza extrema e frustrante. Uma taxa de mortalidade infantil que, mesmo em declínio, continua a registar valores que não deviam ser uma realidade do século XXI. Uma taxa de subnutrição também chocante e agravada pelos hábitos alimentares introduzidos pelos indonésios: vende-se a boa fruta e os ricos legumes para depois comprar e comer só noodles...

Encontrámos, até, situações, estórias, comportamentos, desgraças horríveis - infernais - que, pela sua natureza delicada, não podem ser trazidas a este texto. (E vai aqui um parêntesis socioteológico: se me perguntam se acredito no inferno, esta é a melhor resposta que hoje posso oferecer: "Olha à tua volta! Abre o jornal! Vê as notícias com gotinhas de colírio! Claro que o inferno existe. Não se trata de acreditar ou não acreditar. As evidências estão aí. Estes infernos existem e, se querem a minha opinião, são estes infernos, e não o outro, que devem fazer sangrar os nossos corações.")

Também na área da educação, na qual temos trabalhado, encontrámos desafios imensuráveis, uma complexidade gritante e episódios surreais. É preciso explicar que o sistema educativo de Timor-Leste está a ser construído de raiz. Os colonizadores portugueses pouco cá deixaram. Por altura do 25 de Abril, a taxa de iliteracia em Timor-Leste era superior a 90%! E o pouco que se fez deveu-se às missões católicas. O regime de Suharto, decidido que estava a disseminar a sua ideologia, 'um só país, um só povo, uma só língua', até foi responsável por um desenvolvimento significativo da educação. Foram construídas e abertas escolas de todos os níveis de ensino e vieram professores das províncias indonésias para disseminar a língua. (A política linguística da Indonésia foi extremamente bem sucedida e os seus efeitos continuam, hoje, a dificultar a consolidação da Língua Portuguesa.) No entanto, depois de conhecidos os resultados do Referendo do dia 31 de Agosto de 1999, as milícias pró-indonésia queimaram e destruíram infra-estruturas básicas, incluindo dezenas de escolas. Para além disso, os professores indonésios regressaram às respetivas províncias. A jovem nação deparava-se assim com uma terrível situação: escolas destruídas, professores inexistentes, milhares de jovens e crianças para educar. O país leva agora 14 anos desde a restauração oficial da independência e o setor da educação vai dando os seus passos em direção à visão estabelecida no Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030: "As pessoas serão letradas, qualificadas, saudáveis e viverão uma vida longa e produtiva. Elas participarão activamente no desenvolvimento económico, social e político, promovendo a igualdade social e a unidade nacional".

Passados dois anos já estamos familiarizados com toda esta complexidade e com as contradições que o quotidiano nos traz. Mas estamos igualmente familiarizados - e gratos - com a beleza que esse quotidiano também nos traz. As avenidas e as ruas em que nas horas de ponta se amontoam taxis, jipes, microlets, motorizadas ruidosas e carroças de vendedores ambulantes que frequentemente as empurram em contramão. Os vendedores de peixe que em plena avenida expõem os barramundi, os peixes-papagaio e as sardinhas no muro que separa a estrada marginal da praia. Os mercados de frutas e legumes onde agora, por falarmos e negociarmos em Tétum (e às vezes até no dialeto makassai), já conseguimos preços semelhantes aos do super-mercado. O mágico pôr do sol que, mesmo quando não é observado diretamente, faz questão de espraiar os seus tons vermelhos e liláses sobre toda a cidade de Díli. Os passeios aos municípios, ao Timor profundo onde ainda não chegaram os taxis, nem os hotéis ou bares, mas onde chegou já o desejo de desenvolvimento. Todas estas coisas já nos são familiares e queridas. 

E mais queridas ainda são as histórias e as estórias bonitas que por aqui também encontrámos. Histórias de um progresso que se vai impondo gradualmente e que conta também com uma face benigna e celebrada. Um progresso cujo lado mais estrutural - mais político - tenho a honra de testemunhar em primeira mão: leis, atividades e iniciativas que se vão implementando para que o sistema educativo seja sustentável, mais coerente e garanta melhores resultados. A Débora tem ainda a honra de testemunhar em primeira mão, de forma quotidiana, um lado mais humano deste progresso - com mais rosto. Ela traz-me diariamente pedaços de estórias de meninos e meninas que, a despeito das limitações e das carências, se esforçam para saber mais e para crescer mais. Meninos e meninas inspiradores porque superam as circunstâncias e os obstáculos tão visíveis para alcançar riquezas invisíveis. E há outras histórias de gente que desperta para novas atitudes perante a vida, que adquire novos hábitos, que adquire nova mentalidade. Há, finalmente, a história dos nossos corações que se alargam e esticam - muitas vezes com dor - para que todas estas coisas lá caibam e lá façam morada. 

Em tudo isto, é-nos confirmada a esperança que nos move: de que este lado da realidade não é apenas a dimensão na qual se concretizam infernos, mas também aqui se concretizam paraísos ou, na linguagem evangélica de Mateus e Lucas, também aqui se concretiza um Reino que tudo permeia como fermento no meio da massa. Um Reino do qual há traços visíveis (nós nem sempre os conseguimos detectar e, para tal, pedimos mais colírio!) mas que ainda não se concretiza na plenitude. O e o ainda não. Como o desenvolvimento timorense: "Seidauk, maun, seidauk!"

Depois de dois anos somos, inevitavelmente, pessoas diferentes por tudo aquilo que aqui encontrámos, por tudo aquilo que temos sido desafiados a fazer e por todas as pessoas e todos os sorrisos com quem nos cruzámos. Como consequência do muito trabalho, este blogue tem sido pouco atualizado durante estes dois anos. Espero que, de alguma forma, este balanço mais extenso compense tantos meses sem textos. Mas o barquinho - que somos nós - continua na sua rota. E o condutor - que é o Senhor - tem sido fiel e bom.


Fotografia: D & D no aeroporto de Bali, na manhã do dia 4 de Outubro de 2014, prestes a cumprir o último vôo antes de aterrar em Timor-Leste pela primeira vez.

domingo, 17 de abril de 2016

Uma viagem ao leste de Timor-Leste

Esta viagem era há muito aguardada e planeada com grande expectativa. O município de Lautém, a sua capital Lospalos e, especialmente, o ilhéu de Jaco são destinos famosos entre os malae e que estavam no topo das nossas prioridades turísticas desde a nossa vinda para Timor.

A Débora, em especial, desenvolveu um certo fascínio pelo povo deste município, que parece ter algumas peculiaridades culturais que não se encontram no resto do país, e pelo fataluko, o dialeto que ali se fala.

O ilhéu de Jaco é um paraíso rodeado por águas cristalinas. Tem uma boa extensão de praia paradísiaca com areia branca e um mar onde podemos nadar em conjunto com centenas de peixinhos de todas as cores. Talvez seja um dos locais mais bonitos do mundo!
E qual é a diferença entre esta praia paradisíaca e as imagens dos folhetos das agencias de viagens? Toda! Exactamente porque esta não aparece nos folhetos.

Na sexta-feira santa lá fomos. Um grupo de 6 aventureiros, num jipe alugado, devidamente apetrechados com comes-e-bebes e com o sr. Ameu a conduzir, um motorista já com experiência no percurso Dili-Jaco.

Às 7h30 já estávamos na estrada preparados para a longa viagem. São pelo menos 6 horas de caminho desde Díli até à Praia de Valu, em frente ao ilhéu de Jaco, sendo que os últimos 7 ou 8 kms são particularmente penosos porque a estrada está em péssimas condições, e os últimos 3 km são umas inacreditáveis escadas impossíveis de ultrapassar com um tipo de transporte mais ligeiro.

Mas aqui a viagem faz também parte da aventura, da aprendizagem, da exploração. Fomos lentamente percorrendo as vilas e aldeias de Díli até Com sendo necessário abrandar muitas vezes para dar prioridade aos fieis católicos que, um pouco por todo o lado, organizaram pequenas procissões em jeito de  reconstituição da via sacra percorrida por Jesus, o Cristo, há 2000 anos.

Já depois de acabar com o farnel ali para os lados de Laga, chegámos a Com pelas 15h00. Segundo o plano inicial, iríamos fazer ali uma paragem para mergulhar na famosa praia da vila. No entanto, o relógio já ia avançado e a chuva também espreitava. O mergulho em Com ficará para outra altura (também por ali há umas guesthouses promissoras e uma tranquilidade agradável que convidam a uma nova visita). Continuámos então a caminho da ponta mais a leste de Timor-Leste (passe o pleonasmo). Talvez calhe bem explicar que, apesar de ser um pequeno país, Timor-Leste também se divide na parte leste e oeste, ou, como se diz em Tetum, lorosae (nascer do sol) e loromono (pôr-do-sol). Inclusivamente houve, no passado, e oramos para que tenha sido só no passado, quezílias e rivalidade profunda entre as pessoas de lorosae e as pessoas de loromono.

Bom, lá saímos de Com em direção a Tutuala através de uma estrada secundária mas mais direta. Chegámos a Tutuala pelas 16 horas. Tutuala é uma pequena vila e um dos locais mais recônditos da ilha de Timor (se bem que há locais mais perto de Díli cujo acesso é bem mais difícil).


Fomos até à Pousada de Tutuala, uma de várias pousadas que sobreviveram desde o tempo colonial e que vão lentamente sendo recuperadas para fins turísticos. A Pousada tem localização privilegiada no topo do promontório no qual termina abruptamente a estrada que chega à vila. A partir dali não há estrada. Há só mar: a norte o mar de Banda, a sul o mar de Timor.


Parámos para fotografias, mas foi uma paragem curta: ainda faltavam os tais 7 ou 8 km de descida até à praia de Valu e queríamos fazê-los ainda com boa luz solar.


Junto há praia de Valu há dois locais para pernoitar. Ficámos alojados na Lakumorre Guesthouse. Banho de gayon. Boa comida. Colchão no chão mas com rede mosquiteira. Condição razoável para a realidade de Timor.

Naquela tarde, já perto das 18 horas, ainda deu para um mergulho na praia de Valu, também ela uma bonita praia. Depois houve tempo para jogo de cartas e para o Sequence.


No dia seguinte foi o dia de visitar Jaco! Acordámos cedo, tomámos o mata-bicho e fomos até à zona dos pescadores para embarcar para Jaco num dos seus barquinhos.


O dia passado em Jaco foi, claro, a melhor praia que alguma vez fizemos. Fazer praia ali é maravilhoso. O snorkeling foi fantástico, mesmo tendo de improvisar, nadar só com um braço e segurar os óculos com a outra mão, porque o equipamento partiu-se de forma estranha. Pena é não termos levado uma daquelas máquinas descartáveis que permitem fotografar debaixo de água como levámos às Berlengas.


Bom, mas mais do que palavras sobre Jaco, deixamo-vos as imagens.






Jaco pode ser visitado nesta modalidade em que nós fomos (com boleia dos pescadores) mas para os timorenses é uma ilha sagrada, por isso não se pode lá dormir, nem se pode construir nada.



Às 16 horas os pescadores foram buscar-nos para regressarmos à praia de Valu. No resto do dia ficámos na nossa guesthouse a passar o tempo com jogos, guitarra e converseta.

No dia seguinte levantámo-nos cedo com o objetivo de ir visitar ili-kere-kere, um local de grutas e abrigos criados pelas escarpas daquela espécie de promontório de Tutuala. Este local é duplamente importante: foi descoberta ali arte rupestre datada de 3000 a 2000 anos e foi também lugar de refúgio para os guerrilheiros da resistência timorense durante a ocupação indonésia.






Disseram-nos que as grutas de ili-kere-kere ficavam ‘logo ali, muito perto’. Mas quando um timorense diz que alguma coisa fica perto ou demora pouco, temos de multiplicar essa informação por dois ou por três para obter uma estimativa realista. Então andámos e andámos no meio da selva timorense até chegarmos a ili-kere-kere já a suar em bica. Valeu a pena! Não só pelas imagens rupestres gravadas nas rochas, mas também pela espetacular paisagem marítima que ali podemos vislumbrar. Aquelas escarpas são também habitat de milhares e milhares de abelhas, por isso fomos avisados para falar muito baixinho e não causar qualquer alvoroço que pudesse revoltar as abelhas. Assim fizemos, claro! Uma coisa é ter coragem para nadar nas águas de Jaco mesmo que de vez em quando já tenham sido ali avistados crocodilos. Outra coisa é metermo-nos com abelhas. Somos malucos, mas não tanto!


De ili-kere-kere partimos para a vila de Lospalos. Pelo caminho parámos para fotografar as casas sagradas típicas de Lospalos. Têm um significado muito forte para a religião tradicional animista dos locais e são construídas duas a duas, sendo uma considerada masculina (mane) e outra feminina (feto), e não sendo utilizados quaisquer pregos na sua construção. É uma espécie de puzzle complexo cujo segredo não está acessível a todos.

Lospalos é a capital do município de Lautém e o único meio urbano naquela ponta do território. Parámos na casa do professor Cancio, um dos aventureiros. Mostraram hospitalidade servindo-nos bebidas frescas e um petisco de carne muito saboroso.

Ainda demos uma volta de carro por Lospalos para sentir o pulso à cidade. Uma cidade tranquila, longe do bulício e da desorganização que por vezes impera em Díli. E entretanto faziam-se horas de começar a longa viagem de regresso a Díli. Mais 6 horas de caminho, com uma paragem em Laga para comer um peixinho grelhado no restaurante de beira da estrada gerido pelo professor Laurentino que, ficámos a saber, é também um empreendedor.


domingo, 13 de março de 2016

A ilha das Flores

Uma muito esperada semana de férias em Fevereiro serviu para nos deslocarmos à famosa ilha das Flores localizada na província indonésia Timur Nusa Tenggara. Famosa do ponto de vista histórico-cultural português por ali ter havido presença lusitana desde o século XVI. Os descobrimentos que trouxeram os portugueses a Timor-Leste, também levaram comerciantes e missionários até àquelas paragens e, por isso, a população da ilha é largamente católica e as línguas locais revelam alguma influência do português. Na parte mais oriental da ilha é muito comum encontrar pessoas com sobrenome bem lusitano: Silva, Carvalho, Santos, Soares, etc.


A ilha das Flores fica localizada a noroeste de Timor e um voo direto desde Díli teria, provavelmente, uma duração inferior a uma hora. Mas não existe tal voo. É possível viajar para as Flores a partir de Kupang, capital de Timor Ocidental, mas a viagem entre Díli e Kupang são umas penosas 12 horas de carro e teríamos de requerer visto antecipado junto da Embaixada da Indonésia. 

Optámos pela alternativa mais pragmática: voar de Díli para Bali e depois dali para as Flores, o que, na verdade, significa andar para a frente e para trás. 

Ah! A ilha das Flores é também famosa pela fauna, nomeadamente pela presença do dragão de Komodo. Mas a espécie habita a ponta ocidental da ilha, na zona de Labuan Bajo, enquanto nós optámos por ficar perto da cidade de Maumere, a capital da ilha, na zona mais oriental. 

Sendo estas umas férias com o propósito de descansar, muito do nosso tempo foi passado no fantástico Budi Sun Resort. É um lugar muito tranquilo, com decoração e mobiliário tradicional em bambu e muito bonito, com um staff atento que decide fazer upgrade do nosso quarto sem cobrar mais, e com comida 5 estrelas. 



A ilha das Flores tem muitas semelhanças com Timor-Leste, inclusive semelhanças culturais. Tal como em Timor-Leste, o catolicismo parece estar fundido com um animismo muito enraizado. A organização do território é semelhante: mesmo fora dos centros urbanos há sempre uma casa aqui, outra acolá, como que pontilhando todas as zonas com presença humana. (Esta é uma diferença assinalável que se nota entre a Europa e estas ilhas asiáticas: talvez por força da demografia, ou por ser necessário explorar todos os pedaços de terreno para a agricultura de subsistência, aqui parecem não existir zonas desertas.) As infraestruturas na ilha das Flores estão um pouco mais desenvolvidas do que em Timor. As estradas bem alcatroadas estão em melhores condições (não se livrando das ocasionais derrocadas) e os edifícios são, regra geral, melhor construídos até porque aqui disseminou-se já o uso do tijolo na construção de casas, enquanto que em Timor-Leste ainda se usa muito os blocos de cimento. O turismo está também mais desenvolvido. Aliás, nesse aspeto a ilha das Flores constitui um bom modelo daquilo a que Timor-Leste pode almejar e que está, de resto, afirmado no Plano Estratégico de Desenvolvimento do país: o turismo há de tornar-se um dos motores da economia timorense, mas não há de ser um turismo de massas (como o de Bali) mas um turismo direcionado para públicos-alvo específicos (desportos e atividades aquáticas, turismo de montanha, turismo cultural) sustentável, integrado nas comunidades e com um cariz fortemente ecológico. 

A ilha das Flores tem, na região de Maumere, na região de Ende e na região de Labuan Bajo (talvez as 3 principais cidades da ilha) uma oferta equilibrada de estâncias de eco-turismo quer em qualidade quer em quantidade. Arriscamos até dizer que é um destino turístico muito mais interessante do que Bali (só é pena não ter uma praia como Kuta com a ondulação necessária à prática do surf!).

Estas e outras conclusões foram obtidas nos passeios feitos pela ilha e nas conversas tidas com o sr. António, o condutor do Budi Sun que nos guiou nesses passeios, e com o sr. Carlos, irmão de um colega e amigo da Débora que vive em Maumere e que tivemos oportunidade de conhecer. 

Um dos locais mais fixes a que pudemos ir foi a vila de Sikka. Aqui a herança portuguesa está bem visível: a igreja da vila, uma singela igreja em madeira, terá sido reconstruída a partir de uma igreja que os portugueses ali plantaram e alberga uma estátua de Cristo que se acredita terem sido os portugueses a levar para aquela vila em 1641. 






Aqui encontrámos uma Catarina da Silva que ficou muito entusiasmada quando soube que a Débora também é Catarina da Silva. Eis, portanto, uma foto com duas Catarinas da Silva e mais um bando de miúdos muito simpáticos e risonhos que arranhavam o inglês:


Em Sikka há um grupo de senhoras que vendem tais das Flores (ikat, em língua indonésia). Para além de venderem, uma das senhoras fala inglês e, a troco de 20.000 rupias, explica o processo de confeção do tais dando até oportunidade à Débora para experimentar os instrumentos artesanais que as senhoras usam. (Um tais verdadeiro tem de passar por várias e lentas etapas manuais, podendo levar 3 anos até estar pronto para venda!) 






Por ser a capital da ilha, Maumere pareceu-nos ser uma cidade de serviços, um verdadeiro centro urbano (à escala das Flores). Ali tivemos oportunidade de ir ao mercado tradicional: 



E também fomos à zona marítima onde moram os pescadores maioritariamente muçulmanos, com casas construídas sobre a água:



Também nos levaram ao monte que fica a sul de Maumere para podermos ter uma vista privilegiada de toda a cidade:



Mas o ex-libris desta nossa visita à ilha das Flores foi o passeio ao Parque Natural Kelimutu. Trata-se de uma montanha de origem vulcânica que, aliás, regista ainda atividade vulcânica e no topo da qual se formaram três lagos. Os compostos químicos que formam a base dos lagos e as reações por eles geradas fazem com que a cor das águas pastosas possa alterar-se. Às vezes um dos lagos está verde, outro azul e outro rosa. Nós apanhámos um lago azul e dois verdes, mas estes lagos vulcânicos não deixam de formar uma paisagem espetacular - complementada pelo cheirinho a enxofre - qualquer que seja a sua cor. 





Em jeito de sumário, podemos dizer que a ilha das Flores cumpriu aquilo que lhe pedimos: que nos proporcionasse descanso e tranquilidade e também coisas bonitas para conhecer! Gostámos muito!